quinta-feira, 10 de setembro de 2009

ENTREVISTA
Uma Entrevista com Eric J. Hobsbawm

por Margarida Maria Moura e Gerson Moura
Fonte: Revista Estudos Históricos (FGV) - Ano 1990


Eminente historiador britânico, um dos mais conhecidos no Brasil, o professor Eric J.Hobsbawm é o autor de uma vasta e complexa obra historiográfica, na qual as grandes sínteses sócio-político-culturais respondem ao mesmo tempo a exigências de rigor documental e a orientações metodológicas precisas. Definindo-se como historiador de formação marxista e dialogando permanentemente com a antropologia, a economia e a ciência política, entre outras ciências humanas, Eric Hobsbawm tem-se aproximado de temas como banditismo social, campesinato e política, teoria e método histórico e relações internacionais, com a mesma desenvoltura e erudição com que estuda as grandes revoluções liberais do século XIX na Europa.

Profundamente interessado na América Latina, o professor Hobsbawm tem vindo freqüentemente ao Brasil a convite de instituições acadêmicas para conhecer de perto nossos problemas e nossa história. Aposentado do Birkbeck College (Universidade de Londres), mas dando ainda parte do seu tempo à atividade acadêmica na New School for Social Research em Nova York, continua a produzir obras de inestimável valor, como o recente A era dos impérios, já traduzida para o português.

Nesta entrevista, concedida a Margarida Maria Moura e Gerson Moura, em fevereiro de 1989, ele conta a história de sua formação acadêmica e discute alguns problemas do campo historiográfico, particularmente a sempre instigante questão das relações história-ciências sociais.

Quando começou seu interesse pelo estudo da história?
Meu interesse pela história como disciplina acadêmica começou de fato na universidade, mas meu interesse pela história em geral começou antes, através de Marx. Quando eu estava na escola secundária em Berlim, antes de vir para a Inglaterra, já era politicamente consciente, e ouvi a seguinte advertência de meu professor: “Você não sabe nada, é bom começar a ler.” Foi o que fiz, lendo Engels, Marx e outros. Sem dúvida, a concepção materialista da história foi parte essencial da minha formação. Entretanto, o ensino da história na Alemanha era horrível, muito antiquado, e conseqüentemente não me interessou. Quando atingi as classes mais avançadas da minha Grammar School na Inglaterra, tive a sorte de ter um professor que era muito entusiasmado e descobriu que eu tinha jeito para a história. Ele me emprestou seus livros e sugeriu que eu me candidatasse a uma bolsa de estudos para Cambridge. Ganhei a bolsa, e já na universidade não decidi imediatamenteestudar história. No entanto, acabei chegando à conclusão de que os outros assuntos que eu queria estudar, poderia fazê-lo em caráter particular, ao passo que a história, da maneira como era ensinada nas universidades, era um campo que eu conhecia pouco e valia a pena investigar em detalhe. Foi assim que fiz uma graduação em história. Na universidade inglesa àquela época, ou seja, na década de 30, a história era uma disciplina muito especializada e se podia fazer uma graduação exclusivamente nessa matéria.

Quais eram as principais tendências do ensino e da pesquisa de história àquela época em Cambridge?
Naquela época não havia em Cambridge uma corrente dominante clara. Eu diria que havia o começo de uma revolta contra a concepção convencional de história na Inglaterra, a chamada interpretação “whig” da história, baseada na visão de que a história inglesa se desenvolveu gradualmente até os modernos triunfos da democracia e da liberdade. Havia muito poucos trabalhos de história européia ou história do ultramar. E de fato pareceu-me, tanto a mim quanto a outros jovens esquerdistas, que a história em Cambridge não despertava muito interesse, com exceção da história econômica. Por sorte a história econômica estava nas mãos de um acadêmico brilhante mas pouco confiável -, o falecido professor Michael Postan, um émigré russo que tinha sido algo radical na juventude. Embora fosse muito antimarxista, ele era o único em Cambridge que estava efetivamente informado não só sobre os escritos de Marx, da história marxista e da teoria social marxista na Rússia em que ele cresceu, como também sobre a tradição européia, a tradição alemã e particularmente a tradição da história econômica e social. Aprendemos muito com ele, e acho que é correto afirmar que o procuravam os jovens historiadores mais brilhantes. Além disso, aprendemos realmente muito uns com os outros. Tínhamos vários grupos de discussão e aprendemos muito com os jovens pesquisadores que estavam fazendo seus doutorados, alguns dos quais acabaram se tornando historiadores bastante respeitados. Em resumo, o que aconteceu conosco foi um programa de auto-educação numa universidade que punha à nossa disposição uma enorme quantidade de livros, periódicos e fontes históricas.

Além da história econômica, que outros campos da história o senhor estudou em Cambridge?
Estudamos também o que se chamava de história constitucional, quase uma história legal da Constituição e do sistema político britânico. E, é claro, estudamos muito da convencional história institucional e política da Europa.

Em que momento ocorreu uma mudança de direção nos estudos históricos na Inglaterra, no sentido do abandono da história convencional por um novo tipo de história?
Certamente isso não ocorreu antes da Segunda Guerra Mundial. Creio que houve uma geração de estudantes da minha idade que foi amplamente responsável pela mudança. Lembre-se que antes da guerra já estávamos interessados na história econômica, com o professor Postan. Já conhecíamos os Annales da França e já havíamos tido a oportunidade de ouvir Marc Bloch, que foi convidado para fazer uma conferência na Inglaterra - na época foi-nos dito que ele era o grande medievalista vivo. De fato, já tínhamos um horizonte mais largo do que o comum entre os historiadores estabelecidos. Pode-se dizer que a mudança principal ocorreu na década de 50, quando meus contemporâneos se tornaram pesquisadores e depois professores.

Poderia mencionar nomes e influências que ajudaram a promover essa mudança?
Posso mencionar pessoas como Lawrence Stone em Oxford. Paradoxalmente, a mudança veio um pouquinho mais cedo na história antiga, por razões que nunca compreendi muito bem. A história da Antiguidade Clássica, de Grécia e Roma, atraía sempre pessoas com os mais variados interesses sociais e, numa certa medida, até mesmo os marxistas. Em geral, desde a Segunda Guerra a principal cadeira de história antiga em Cambridge esteve nas mãos de historiadores sociais ou de historiadores bastante criativos. Antes da guerra, isto não ocorria. Penso em A. H. M. Jones e outros como ele. Uma grande parte da mudança deveu-se certamente a um grupo de historiadores marxistas, que, novamente, eram meus contemporâneos. Alguns um pouco mais velhos, outros um pouco mais moços, organizaram entre outras coisas uma revista histórica, Past and Present, que representava as novas tendências. Lançada na década de 50, Past and Present firmou-se como a revista mais importante ainda antes dos anos 60. A mudança também se beneficia. de tendências internacionais, porque depois da guerra o Congresso Internacional de História foi dominado por um certo período pelo grupo francês dos Annales. E através desse grupo, que colaborava com o professor Postan e outros, uma dimensão social e econômica nova foi introduzida mesmo na história ortodoxa, fato que todos aprovamos.

Poder-se-ia pensar em semelhanças no desenvolvimento da história social e da história econômica na Inglaterra e na França, no sentido de que esse desenvolvimento envolveu a colaboração entre historiadores marxistas e não-marxistas?
Há diferenças. Por exemplo, na França, os historiadores marxistas não desempenharam um grande papel, e muitos jovens brilhantes daquele tempo que estavam no Partido Comunista francês não tomaram parte como marxistas nas discussões que nós estávamos organizando. Nós não soubemos que eles eram marxistas ou comunistas, senão quando eles deixaram o Partido Comunista e tomaram rumos diferentes, tal como Le Roy Ladurie, François Furet e outros. Nossos contatos, como esquerda dos historiadores ingleses, foi muito mais com os Annales, e com o tipo de história francesa representada por Marc Bloch.

Na França, muitos intelectuais, historiadores inclusive, deixaram o Partido Comunista e mudaram suas abordagens históricas em decorrência das principais crises do movimento comunista no plano internacional. Foi assim também na Inglaterra?
Curiosamente isto não ocorreu na Inglaterra de um modo significativo. As crises políticas no movimento comunista levaram antigos historiadores comunistas a deixar o Partido Comunista, mas eles permaneceram na esquerda. A situação é bastante diversa da França, onde gente que tinha sido antes muito militante, às vezes stalinista, deixou o partido, e ao deixá-lo mudou sua ideologia e sua interpretação da história. Acho que se trata de uma situação diferente. Na Inglaterra, muito poucos dos que começaram como historiadores marxistas tornaram-se hoje historiadores anti-marxistas.

Considerando a velha e sempre renovada questão da relação entre história e ciências sociais, em sua opinião, que tipo de contribuições das ciências sociais podem ser úteis ao ofício do historiador?
Em princípio, sempre acreditei que a história está profundamente enraizada nas ciências sociais e pode se beneficiar enormemente delas. Penso que a história é uma disciplina que encontra explicações generalizantes. Desde o século XIX tem havido um debate acerbo, particularmente na Alemanha, entre os historiadores que acreditam que a história não pode generalizar, que só trata de fatos específicos, pessoas específicas, e portanto não se pode fazer afirmações amplas, e aqueles que desejam ver na história um padrão evolutivo ou outro qualquer. Neste debate, que se consubstanciou em acesas discussões entre os cientistas sociais na década de 90 do século passado, é claro que pessoas como eu estavam muito mais do lado dos generalizadores e dos cientistas sociais. Mas, por outro lado, os cientistas sociais muitas vezes não têm sido particularmente úteis aos historiadores pelo modo como se especializaram. Por exemplo, na década de 50, as principais linhas da ciência social estavam dominadas pela algo mecânica teoria da modernização, que começou nos Estados Unidos e não era de grande interesse para o historiador. Como modelo de mudança histórica é primitivo demais. Conseqüentemente, não havia muito o que fazer. Além disso, politicamente falando, esse modelo estava muito ligado à ideologia da guerra fria. Mas isto não é uma crítica à abordagem das ciências sociais em geral. Novamente, se olharmos a economia, veremos que há alguns tipos de economia que o historiador considera extremamente úteis, mesmo se distantes de Marx - por exemplo, a escola econômica que trabalha com o que parece ser uma mudança de longa duração (Shumpeter), ou com tudo aquilo que estaria ligado a realidades sociais. Pessoalmente, admiro pessoas como Arthur Lewis, o economista; ele é útil no estudo do desenvolvimento econômico. Por outro lado, uma grande parte da economia hoje em dia é altamente técnica, uma abordagem baseada em esquemas neoclássicos bastante estreitos e deliberadamente irrealistas. Um de meus colegas disse um dia que estudar o equilíbrio não é lá muito interessante para os historiadores porque estamos interessados em situações onde não há equilíbrio. Esta é a razão pela qual, em geral, não emergem da cliometrics* questões históricas interessantes.

A cliometrics parece ter ainda grande influência nos Estados Unidos.
Ela é importante e influente nos Estados Unidos, embora eu não deixe de ter a sensação de que não é tão forte quanto foi. Dizer isto não significa um ataque ao uso da tecnologia dos computadores ou de qualquer outra técnica quantitativa disponível. Estou dizendo, simplesmente, que estas coisas são métodos e não o conteúdo da teoria. E se voltarmos a olhar para a sociologia, veremos que há teses sociológicas que são sem dúvida muito valiosas para o historiador. Karl Marx é um exemplo óbvio, e Max Weber, outro. Quer se concorde, quer não, qualquer historiador que leia Max Weber vai achá-lo útil. Mas há também tipos de sociologia, como a da modernização, que não são particularmente úteis. Pessoalmente, sempre achei a escola da antropologia social a mais fecunda em me dar idéias, e outros historiadores ingleses concordam comigo. No entanto, é preciso dizer que há algumas tendências recentes nas ciências sociais e possivelmente até mesmo na filosofia das ciências sociais que são inaceitáveis, sobretudo a tendência a negar a existência de uma realidade objetiva, traduzindo tudo em termos subjetivos. Esta tendência parece estar ganhando terreno tanto na sociologia quanto na antropologia social. E devo dizer que, se não há diferença entre os fatos da história e a ficção, então não faz sentido ser historiador.

Poderíamos pensar também, além de idéias, em métodos e técnicas de pesquisa derivados das ciências sociais?
Estou afirmando que as ciências sociais podem prover idéias, podem fornecer modelos. O aspecto interessante é que a maioria dos modelos gerais de mudança histórica, de evolução histórica do mundo, não são de autoria de historiadores profissionais porque na maior parte os historiadores profissionais são especializados demais e ficam um pouco ansiosos de ter que sair de sua especialidade. Os modelos nasceram de figuras que não eram historiadores profissionais, mas cientistas sociais - aqueles que retrospectivamente tratamos de cientistas sociais, como Marx, ou que mais recentemente vêm da ciência política. Assim, penso que a criação de modelos é mais fácil para eles do que para os historiadores não-marxistas. Quanto à metodologia, é claro que de algum modo a metodologia da história é suigeneris, mas há muito pouco que pode ser dito sobre o assunto. O domínio da metodologia básica, da técnica de arquivo e de outras, é algo que não envolve nenhum problema especial.

No seu artigo “From social history to history of society”, o senhor sugere que o historiador deveria usar algumas técnicas que outras ciências sociais já desenvolveram, tais como procedimentos estatísticos, observação participante, entrevistas em profundidade e até mesmo métodos psicanalíticos.
Qualquer técnica que seja relevante para um trabalho deve ser tentada. Na antropologia, por exemplo, não creio que seja somente a observação participante que tem valor. O que achamos de valor na antropologia é o conceito de sociedade como um complexo interativo, por assim dizer, de instituições, valores e atividades, no qual tudo está interligado na tarefa de reprodução da sociedade da atual para a próxima geração. É pelo menos este problema da produção da sociedade que torna mais fácil à antropologia social influenciar um tipo de historiador que tem uma formação marxista como eu.

Falando em antropologia, alguns estudiosos têm mencionado o uso de conceitos tais como etnicidade, comunidade e cultura na história do trabalho como resultado do impacto da antropologia. Trata-se de uma avaliação correta?
O problema é saber se estamos falando de palavras ou de modelos. Não precisamos dos cientistas sociais para nos dizer o que é comunidade. Qualquer pessoa que estuda história agrária, por exemplo, a história do campesinato, sabe que a comunidade é certamente uma coisa muito importante naquelas áreas do mundo onde as vilas são muito fortemente organizadas. Então, a questão é se podemos avançar para além disto. Penso que há modelos provenientes de outras fontes que podem ser úteis; por exemplo, modelos para o estudo do campesinato. No geral, os historiadores econômicos e os historiadores sociais que estudam o problema do campesinato e as mudanças na sua participação na vida moderna têm aprendido muito com os cientistas sociais, tanto com os antropólogos sociais quanto com os pesquisadores de campo. Por outro lado, ao invés de ver a história como um parasita das ciências sociais ou de uma ciência social, devemos visualizar todas as ciências humanas com que voltadas para o mesmo tipo de questionamento a partir de ângulos diferentes. É hoje evidente que nomes das ciências sociais têm sido influenciados por historiadores que estão ou estiveram na mesma “freqüência”. Edward Thompson, por exemplo, e, em certa medida, eu próprio, temos sido lidos por sociólogos e antropólogos, do mesmo modo que nós os temos lido. Penso que não é só uma questão de aprender um com o outro, mas de se ligar às questões a partir do seu próprio ponto de vista.

Que tipo de problemas a história e as ciências sociais poderiam estudar em comum de um modo frutífero?
Parece-me que a questão está em formular o problema com o qual nos defrontamos. Do meu ponto de vista, há um problema geral com o qual a história e as várias ciências sociais devem se defrontar, a saber, o da evolução da sociedade global. Em primeiro lugar, como é que ocorre que a sociedade humana, que começa de fato com caçadores e coletores, acaba onde estamos hoje, numa sociedade de alta tecnologia. Em segundo lugar, como é que a evolução não se deu homogeneamente através do mundo, mas de uma maneira muito complicada, mais intensa em algumas partes do que em outras, e em determinado momento conquistando ou reconquistando o mundo a partir de uma base regional precisa. De uma perspectiva de longa duração, esta me parece ser a questão maior, ou ao menos uma grande questão que o historiador deve enfrentar. Em terceiro lugar, esta é também uma questão que antropólogos, sociólogos, economistas e muitos outros têm que enfrentar, na medida em que possamos concordar sobre qual é o problema. Na busca da resposta, poderão ser dadas contribuições de diferentes pontos de vista.

Um fato notável que hoje se observa na história social é o grau de especialização a que se chegou, com a institucionalização de campos e subcampos e a virtual ausência de contato desses campos e subcampos entre si. Como o senhor avalia esse problema?
A especialização crescente é em alguma medida uma função da profissionalização crescente, ou de uma academicização dos assuntos. Penso que esta é uma trilha negativa. Significa que novos pesquisadores precisam “publicar ou perecer”. Significa também que a melhor maneira de publicar e ficar conhecido é lançar um periódico novo. Vê-se que um certo número de periódicos novos lançados por determinados grupos são em parte autopropaganda, em parte propaganda de sua própria universidade e em parte outra ordem de coisas. É compreensível, mas não tem nada a ver com o avanço da historiografia. O segundo fator é obviamente que quanto mais pessoas há no campo, mais difícil fica para os mais jovens a descoberta de áreas nos estudos históricos que ainda não tenham sido trabalhados. Conseqüentemente, surge uma vez mais a tendência a desenvolver campos relativamente especializados de modo a transformá-los em campos maiores. Não acho que isto seja particularmente prejudicial, porque há uma seleção natural. Todos nós sabemos que enquanto há muitas centenas de periódicos, que podem crescer a uma taxa de cinqüenta ao ano, há de fato um certo número mais preeminente que todo o mundo lê, mais um ou dois de sua própria especialidade. Contudo, é verdade que uma especialização excessiva apresenta um problema de comunicação. Trata-se, talvez, de um problema menos agudo na história do que nas ciências naturais, em parte por que muito mais é publicado nas ciências naturais, e em parte porque se a maioria de nós está apta a ler um artigo das revistas históricas e entendê-lo, nas ciências naturais já é necessária a existência de periódicos sérios como The Scientific American, ou The New Scientist, que explicam “pedaços” de ciência a outros cientistas que os desconhecem.

De qualquer modo, haveria problemas nessa crescente especialização da história social, não?
Parece-me haver uma razão pela qual se deve ser mais critico em relação à especialização crescente na história social. Parece-me haver por trás da especialização dois conceitos completamente distintos de história social. Um conceito é o do estudo de aspectos particulares da vida; de algum modo há que fazer o estudo diacronicamente, mas em geral não é esta a ênfase do campo. Por exemplo, tomemos a história da comida ou a história da doença, ou os que estão interessados na história da infância; apenas isto. Mas haverá sempre infância, e haverá sempre comida... Na verdade, estas pessoas estudam alternativas àquelas partes da história que mudam, que se desenvolvem, que se expandem. O outro tipo de história social, que eu chamo de história da sociedade, é o que está interessado em saber como a sociedade muda, em saber como a sociedade veio a ser o que é, e no que difere do que aconteceu no passado. Há uma tendência de alguns periódicos da nova história social a se tornarem veículos de pesquisadores interessados num aspecto particular da vida humana, sem se proporem qualquer questão histórica séria. São periódicos de antiquário, revistas de colecionador, destinados àqueles que estão simplesmente interessados em ter mais um exemplo de, digamos, um caso de lesbianismo na Espanha do século XVII. São interessantes para as pessoas que se interessam por um aspecto particular em si mesmo; mas há que perguntar quão importante é isto para aqueles que não estão interessados no problema do lesbianismo na história. Este me parece um perigo, um grande perigo para a história social. É lógico que cada pequena parcela de pesquisa especializada pode ser articulada com a problemática ampla da mudança histórica. Deste modo, não estou dizendo que se trata de uma coisa completamente inútil, mas será que aqueles que estabelecem este campo específico pensam do modo como foi explicado acima? Ou será que o concebem como um campo para colecionar fatos interessantes e atraentes, fatos que interessam a um grupo específico, a um público específico de colecionadores?

Seria esta a principal tendência hoje em dia?
Não, não é. Há sempre um desenvolvimento duplo: há uma tendência à especialização crescente, mas ela é sempre contraposta pelo que chamamos de tendência à interdisciplinaridade. Na fronteira de cada área de especialização, há aquela área onde todos os campos se encontram e os temas interdisciplinares se comunicam.

Parece ser uma questão filosófica, a de definir que temas são relevantes, que temas não são relevantes. Há quinze anos no Brasil, muitos diriam que não era importante estudar o campesinato. Mas hoje...
É uma questão filosófica muito difícil, é verdade; e é também muito difícil descobrir por que um historiador ou um cientista social ficam subitamente atraídos pela abertura de uma área. Há aí um elemento de moda, sem dúvida. No entanto, acontece que de tempos em tempos certos temas começam a se tornar significativos. Acho que há razões históricas para isto. Uma das razões pelas quais a história do trabalho se desenvolveu tão rapidamente na Inglaterra e na maioria dos países a partir do final da década de 50 é precisamente a ocorrência de grandes mudanças na classe operária. E tanto os historiadores enquanto historiadores, como historiadores enquanto expressão da classe operária, tomaram consciência dessas mudanças. Alguns dos estudos consagrados mais antigos eram quase sempre autobiográficos, como os de Richard Hoggart e Raymond Williams, já que tratavam da transformação na vida, nos espaços de comunicação da classe trabalhadora e na família que os próprios autores haviam vivenciado. O começo da mudança, tanto quanto o declínio da classe operária tradicional nas indústrias tradicionais, foi o que atraiu a atenção dos pesquisadores. Acredito que o mesmo ocorreu com os estudos sobre o campesinato. Os estudos camponeses tornaram-se importantes no momento em que claramente o campesinato não era mais uma massa estável. Ela estava se movendo, estava migrando, estava desgastada, estava sendo expulsa, e foi nesta circunstancia que logicamente muitas pessoas começaram a se interessar pelo campesinato. Temos que distinguir aqui entre fazer julgamentos de valor político e julgamentos de valor acadêmico sobre um assunto. O que o papel político do campesinato é ou foi é uma coisa; outra coisa é o fato de que o campesinato está sendo pela primeira vez transformado de grande maioria da raça humana em um segmento específico. E é isto que está sendo estudado no seu conteúdo. Mais: é algo que projeta luz no contexto mais amplo das mudanças de longa duração na sociedade humana. Mas ainda assim, você está certa; por que razão escolhemos um assunto, é muito difícil saber. Seria muito interessante ver se existe algum modo objetivo de compreender por que escolher determinado assunto, por que em certos períodos encontramos historiadores e cientistas sociais bastante independentes convergindo para um campo particular. Não sou capaz de compreender isto completamente.

Como o senhor avaliaria a aplicação de seu conceito, algo polêmico, de “pré-político” ao estudo do campesinato hoje?
Eu não utilizaria mais este termo sem uma qualificação bastante cuidadosa. O que eu queria dizer não era que as pessoas não eram de nenhum modo políticas, mas que eram políticas antes da invenção da terminologia, do contexto moderno e do complexo institucional da política - o cenário moderno, o teatro moderno da política, o drama moderno da política. É algo que, em geral, não existiu até o final do século XVIII, até a era das grandes revoluções. Antes, é lógico, não é que não houvesse qualquer política. É que simplesmente a política operava de uma maneira diferente e, eu diria, muito freqüentemente de modo muito mais limitado, porque havia muito menos possibilidade de influenciar autoridades que tomavam decisões em larga escala. Nessa perspectiva, existe um sentido de mudança importante. Contudo, mesmo depois do desenvolvimento do moderno teatro da política, de seu cenário e de seus enredos, há uma série de processos, movimentos sociais e classes que num certo sentido representam os velhos enredos. Não estão ainda habituados a operar no novo modo, ainda pensam à moda antiga. Nesta medida, o conceito de pré-político persiste e mantém sua força. Parece-me claro, por exemplo, que hoje, no Irã, um grande número das massas de indivíduos organizados não pensa nos moldes do século XX. Mesmo que um de meus colegas tenha demonstrado claramente que o chamado fundamentalismo do aiatolá Khomeini repousa operacionalmente no conceito territorial do moderno Estado-Nação e no governo moderno, o qual não tem nada a ver com o Corão e com a situação no século VII, assim mesmo, um grande número não pensa nestes termos. Eles pensam nos mesmos termos em que seus bisavós ensinavam a pensar sobre questões sociais, sobre o modo de organizar a sociedade e sobre o que é e o que não é uma sociedade justa ou uma sociedade tolerável.

Nesse caso, “pré-político” significaria político de outro tipo?
Certamente. É neste sentido que estou tentando tornar claro o conceito. Já tentei esclarecê-lo em uma ou duas publicações, porque sei que o assunto e o próprio termo têm-se mostrado muito controversos.

Para encerrar a reflexão sobre história e ciências sociais, como o senhor avaliaria a utilidade de conceitos tais como ideologia, mentalidade e cultura, largamente utilizados nos escritos históricos?
Cultura é útil certamente; cultura no sentido antropológico, isto é, uma totalidade de idéias, sistemas de valores, formas de comportamento e outros aspectos. Mentalidade eu não acho particularmente útil, a não ser quando por exceção se aproxime do que o antropólogo chama de cultura, porque fora daí o termo me parece ser meramente descritivo. Seria preferível, como têm feito os antropólogos, tentar formar um sistema de pensamentos para ver como atividades e idéias específicas estão ligadas entre si, e com a sociedade onde têm suas raízes, e não dizer simplesmente “mentalidade”, pois nesse caso os riscos são os mesmos dos estudos tradicionais de folclore: “Isto é o tipo de coisa que o povo faz, que tal pessoa faz, não há necessidade de explicar mais.” Ora, o que eu acredito é que se precisa explicar mais. Por que as pessoas se comportam assim? Por que elas pensam desse modo? O que é que elas estão tentando pensar? E quais são as limitações do seu pensamento? Entre os indígenas dos Andes há um mito bastante conhecido, e que pode ter sido revivido posteriormente, sobre o possível retomo do Império. Por que é que tais coisas existem? Não é suficiente afirmar: aqui estão as esperanças dos índios que não esqueceram o Império Inca. Por que tais memórias, que devem ser tão remotas, ainda operam com eficácia, enquanto no México não há equivalente? O que significa exatamente, nos termos de um padrão geral de vida, ter idéias deste tipo? É algo parecido com a devoção de um santo local, que tem uma função definida - se você tem um problema específico para ser resolvido, você reza de uma maneira específica, faz sacrifício de uma maneira específica. Em que circunstancias surge isto? Dito de outro modo, como isto pode ser articulado com o que idealmente esperamos ser um sistema coerente de crenças e explicações do mundo? Como se ajusta, se adapta, e, se possível, muda o mundo? Quanto à ideologia, é, como foi, algo que se aplica às pessoas que formulam ideologias.

Finalmente, como o senhor vê o contraste entre um certo crescimento do marxismo nas universidades norte-americanas e a crise do marxismo da Europa Oriental?
Se eu não quisesse falar sério, poderia responder. “Você precisa viver no capitalísmo para encontrar uma ideologia anticapitalista...” Mas realmente o avanço do marxismo nas universidades americanas é um fato concreto, na história e nas outras humanidades, ainda que não em toda parte... É um subproduto da radicalização dos estudantes e intelectuais dos fins dos anos 60. Uma grande percentagem deles, após o declínio do movimento, foi para a universidade e lá se tornou atuante. Então, eu acho que essa geração radicalizada vem introduzindo ainda mais marxismo na universidade americana. Da mesma forma que, de certo modo, a minha própria geração, a dos anos 30 e 40, introduziu o marxismo na universidade inglesa, mas num grau bem menor. Acho que é isto o que está acontecendo, não sei se consigo encontrar outra explicação. Mas todas essas pessoas são atores relativamente jovens. Agora, quanto à crise do marxismo na Europa Oriental, é parte da crise dos regimes da Europa Oriental. Isso está ocorrendo agora porque durante muito tempo o marxismo foi a teologia oficial, e conseqüentemente o pensamento marxista original não tinha muita expressão. É uma coisa que temos de aceitar: o marxismo na Europa Oriental não tem sido eficiente nem competente.

Londres, 7 de fevereiro de 1989

* Cliometrics ou “história social-científica quantitativa”, designa uma técnica de análise histórica fundada na quantificação de dados empíricos. Seus defensores mais radicais consideram-na o método científico por excelência da análise histórica.

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sexta-feira, 4 de setembro de 2009

NOTÍCIA
170 Anos em um Clique
Banco de dados permite explorar a riqueza de fontes documentais e artigos publicados na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro desde 1839

por Renato Venâncio
Professor Universidade Federal de Ouro Preto
Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional


Em qualquer lista dos principais patrimônios culturais do Brasil, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) sempre estará presente. A biblioteca e o arquivo da instituição preservam boa parte de nossa memória nacional. Para divulgar esse acervo e outras fontes documentais espalhadas por vários arquivos, bibliotecas e hemerotecas, o IHBG criou há 170 anos um periódico mundialmente famoso.

Bem antes da invenção da internet, coube à Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (RIHGB) organizar e disponibilizar artigos, monografias, catálogos, guias e inventários analíticos sobre os mais diversos temas da história brasileira. Riqueza que também está acessível pela grande rede.

No site do IHGB, há um banco de dados textual do conjunto do acervo. A pesquisa restrita à opção “artigos” apresenta interessantes resultados. Façamos um exercício: imaginemos um pesquisador interessado em estudar elites políticas coloniais. A busca pela palavra “governadores” retorna 19 artigos. Em meio às referências, selecionamos o texto “Catálogo dos capitães-mores e governadores da capitania do Rio Grande do Norte”, publicado em 1854 na RIHGB.

Conforme mencionamos, no site do IHGB há somente o banco textual, ou seja, apenas as referências bibliográficas dos artigos. Para localizar os textos propriamente ditos, uma solução é a busca avançada do Google Livros. No campo “Procurar resultados”, escreva o nome do periódico. No campo “Data”, selecione o ano de 1854. Conforme é possível perceber, a visualização completa do volume da RIHGB está disponível.

Tendo em mãos a lista dos governadores, podemos navegar também no site do Conselho Ultramarino/UNB, onde se encontra vasto material documental a respeito do Rio Grande do Norte. A próxima etapa seria integrar esse material ao debate historiográfico presente na bibliografia especializada. Então, é a hora de desligar o computador e ir para a biblioteca.

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terça-feira, 1 de setembro de 2009

NOTÍCIA
Após 30 anos, Brasil ainda não fez o acerto de contas
Vítimas e familiares de pessoas mortas e desaparecidas na ditadura militar pedem justiça e punição aos torturadores

por Michelle Amaral
Brasil de Fato (26/08/2009)


No dia 28 de agosto, completam-se 30 anos da promulgação da Lei de Anistia, que possibilitou a volta ao Brasil de exilados políticos e a liberdade a pessoas presas pela ditadura civil militar (1964-1985).

Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes, ex-presa política e membro do Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA), conta que “a campanha pela anistia era para uma anistia ampla, geral e irrestrita, e a anistia não foi nem ampla, nem geral, nem irrestrita”.

Tal opinião é compartilhada por muitos daqueles que viveram aquele período, de ex-militantes a juristas, e é motivo até hoje de controvérsia entre setores do governo brasileiro.

No mesmo ano de promulgação da lei, em 1979, exilados pelo regime em outros países puderam retornar ao Brasil. De igual modo, presos político foram soltos.

Maria Auxiliadora, no entanto, relata que, justamente pela interpretação da lei de anistia em relação aos crimes que seriam anistiados, ficaram de “fora da anistia”. “Naquela época havia 53 presos políticos e 19 não saíram, ela [a lei] não reintegrou todos os cassados”, relata.

A lei 6.683 anistiou aqueles que “no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes”.

A divergência na interpretação da Lei está na descrição de “crimes conexos”. Em seu texto se descreve como conexos “os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”. Desta forma, os crimes cometidos por agentes do Estado - como torturas, censuras, cerceamento da liberdade, entre outros – acabaram sendo anistiados também.


Histórico

Resultado de um forte movimento de massas, o projeto de lei da Anistia foi encaminhado em pleno regime militar pelo então presidente João Baptista Figueiredo ao Congresso, e por 206 votos contra 201 foi aprovado em 22 de agosto de 1979. Seis dias depois a Lei foi sancionada pelo presidente Figueiredo.

“Foi, ao meu modo de ver, um momento importantíssimo. Porque naquele momento nós aplicamos à ditadura militar uma derrota política. A ditadura, que não reconhecia ao menos a existência de presos políticos, que não reconhecia que havia a oposição clandestina e que consumava o país, foi obrigada a discutir com a oposição”, lembra Ivan Seixas, membro do Fórum dos Ex-Presos Políticos.

Seixas, durante seu depoimento no Seminário Internacional “30 anos da Anistia no Brasil – o direito à memória, à verdade e à justiça”, evento que reuniu ex-militantes e familiares de vítimas do regime militar na faculdade de Direito da USP, afirmou que a Lei de Anistia teve caráter de “cessar fogo” em um “momento extremamente importante da luta contra a ditadura”.

A pressão dos movimentos populares em torno da anistia se deu através da criação de comitês, que reuniam familiares de presos políticos e exilados em debates e manifestações. A principal organização da época foi o Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA), fundado em julho de 1978 no Encontro Nacional dos Movimentos pela Anistia, em Salvador (BA).


Debate

Após 30 anos de sua promulgação, o debate em torno da interpretação da Lei de Anistia e da responsabilização ou não de culpados pelos abusos cometidos na época persiste.

No governo federal as opiniões se dividem. Enquanto os ministros da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Paulo Vanucchi, e do Ministério da Justiça, Tarso Genro, ao lado de ex-presos políticos e familiares das vítimas da ditadura, pedem que haja o julgamento de agentes do Estado que cometeram crimes, como a tortura. O advogado-geral da União, José Antonio Dias Toffoli, e o ministro da Defesa, Nelson Jobim, alegam que os atos cometidos na época configuram crime político e não crime comum, sendo enquadrados assim na anistia.

“A tortura é um crime comum, a tortura não é crime político em nenhum lugar do mundo. Internacionalmente a tortura é considerada como um crime de lesa-humanidade”, protesta Maria Auxiliadora. A ex-presa política explica que se um país assina Tratados Internacionais, ele fica submetido ao que é determinado pelas nações que o compõem. “Então, do ponto de vista político e jurídico, não tem como se anistiar alguém que torturou”, completa.


Responsabilização

Em outubro de 2008, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) protocolou no Supremo Tribunal Federal (STF) uma ação em que questiona a concessão de anistia a servidores e militares envolvidos com tortura, morte e desaparecimento de militantes políticos. A ação deve ser julgada pela Corte ainda este ano.

Outra ação foi levada à Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) pela Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos de São Paulo em que se pede que o Brasil seja julgado por detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de 70 pessoas da Guerrilha do Araguaia, entre 1972 e1975.


Futuro

Segundo Ivan Seixas, os crimes cometidos hoje são herança dos abusos praticados durante a ditadura militar, como torturas, chacinas e sequestros. Ele ressalta a importância de “diálogos que levam informação e mobilizam contra a ditadura uma herança ideológica que a sociedade brasileira ainda tem”.

“Quando falamos em anistia, estamos falando em derrotar esta prática da barbárie, que é cotidiana”, afirma o ex-preso político.

Da mesma forma, Maria Auxiliadora defende que sejam feitas campanhas de conscientização, principalmente pela mídia. Ela chama a atenção para o caso da tortura, que ainda está presente na sociedade brasileira. “Precisa uma campanha de esclarecimento sobre a tortura, porque ela é um crime imprescritível, porque ela não se justifica em nenhuma situação, porque dignifica um país dizer que nele não tem tortura nem em preso comum, nem em preso político, nem em ninguém”, explica.

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quinta-feira, 27 de agosto de 2009

ARTIGO
De Canudos à Fazenda Southall: Crônicas de Mortes Anunciadas

por Diorge Konrad
Professor Adjunto Departamento História UFSM


“O adversário tem, daquela hora em diante, visando-o pelo cano da espingarda, um ódio inextinguível, oculto no sombreado das tocaias...”
“Pelas frinchas das paredes estourava de minuto em minuto um tiro de espingarda. (...) foram de cobardia feroz” (Euclides da Cunha, em Os sertões) **


Em 1909, quando Euclides da Cunha se foi, já havia sido um enorme sucesso em vida, ganhando a imortalidade na Academia Brasileira de Letras e um lugar no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Seu livro Os sertões, lançado sete anos antes, apesar do conservadorismo positivista, se transformou em um marco do pensamento social brasileiro, expressão original das contradições históricas de nosso País e da luta pela terra, heranças de um passado escravista e latifundiário. Cem anos depois da morte de Euclides, a luta e as mortes retratadas em sua obra continuam. No coração do latifúndio gaúcho, em São Gabriel, foi assassinado mais um sem-terra: Elton Brum da Silva.
Em Canudos, se falava de um movimento reacionário, messiânico, anti-republicano. Contra os miseráveis, liderados por Antônio Conselheiro, uma República da lei e da ordem que não aceitava a existência da questão social, tratando-a como caso de polícia.

Para a solução do conflito agrário, resultado do abandono político de milhares de sertanejos despossuídos, a repressão armada a serviço das classes dominantes, regionais ou nacionais.

Euclides da Cunha desvelou não apenas Canudos, mas o Brasil da miséria e da exploração. Contraditoriamente, formado na mesma ideologia política dos que massacraram Canudos, sua pena ajudou a compreender parte de um País e de uma classe dirigente que não dá os anéis, nem teme perder os dedos.

Em dois anos, de 1896 a 1897, parte do sertão da Bahia foi marcado por um movimento social e de religiosidade popular que a visão eurocêntrica dos senhores não podia conceber e entender. A grave crise econômica oriunda da transição do trabalho escravo para o trabalho livre, com a opção elitista pela força de trabalho branca e imigrante, restou mais grave para as regiões de latifúndio. Somado com as fases de seca, o desemprego no campo levou os sertanejos para a esperança do Arraial de Canudos, reunindo milhares de famélicos, mas esperançosos trabalhadores do campo.

Uma condição social temerosa para os grandes fazendeiros, para setores da Igreja Católica, enfim, para a oligarquia republicana. A solução do ?problema? se deu pelas expedições militares, três delas derrotadas, que passaram a determinar o destino de Canudos. Milhares de sertanejos mortos, mais um quarto deste total de militares, além do incêndio dos mais dos cinco mil casebres da localidade.

No Rio Grande do Sul, mais de um século depois do Canudos, tão bem retratado por Euclides da Cunha, temos uma tardia e teimosa ofensiva neoliberal, quase extemporânea diante da grave crise da política econômica hegemonizada pelo capital financeiro. No governo de Yeda Crusius, marcado pela criminalização dos movimentos sociais, para o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra e o adiamento da solução da questão agrária no estado, bem como para outras reivindicações, a lei e a ordem, a repressão tem sido a marca para a solução dos conflitos.

Como já disse no artigo ?Novo jeito de governar privado, corrupto e repressor?, publicado aqui, em 25 de junho de 2008, no governo de Yeda Crusius, iniciado em 2007, o novo jeito de governar, plataforma de campanha, começou a mostrar a sua velha face neoliberal logo em seu início: a forma foi a venda de ações do Banrisul, através do processo de privatização travestido de capitalização, além da opção pelo chamado déficit zero, uma aberta política de não-investimento social. Porém, não bastava somente a privatização do Estado. Este processo veio acompanhado de corrupção e repressão.

No primeiro caso, quase dois anos depois da Operação Rodin, iniciada em novembro de 2007, as denúncias iniciais do Ministério Público e da Polícia Federal, as quais demonstraram as articulações entre as Fundações Privadas de Apoio (Fatec e Fundae), ligadas a Universidade Federal de Santa Maria, empresas sistemistas e a direção do Detran-RS, num super-esquema de desvio de recursos públicos que envolveria em torno de 44 milhões de reais, transformaram a governadora em ré em uma ação de improbidade administrativa ajuizada pelo Ministério Público Federal. A ação contra ela e mais oito importantes nomes da política gaúcha, entre assessores e deputados da base aliada, fez a crise política definitivamente bater as portas do Rio Grande do Sul e do modo tucano de governar. Mesmo que a grande mídia nacional faça blindagem deste processo, sem relacioná-lo com o projeto das classes dominantes para 2010.

Como resultado, depois da CPI do DETRAN, desenvolvida em 2008, nova Comissão Parlamentar de Inquérito está tendo início na Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, a fim de averiguar o governo do PSDB-DEM.

Pois, foi nesta quadra de uma corrupta política neoliberal que a face para quem protesta e reivindica ganhou seu capítulo mais recente.

Diante das denúncias de corrupção e a crise instalada no centro do governo do Rio Grande do Sul, o movimento social gaúcho voltou às ruas, retomando as manifestações públicas, exigindo o Fora Yeda. Estudantes, sindicalistas, Via Campesina, MST, Movimento de Luta pela Moradia e partidos políticos de oposição, entre outros movimentos, resolveram enfrentar a opção governamental. Tendo atrás de si o velho discurso da manutenção da lei e da ordem, as classes dominantes gaúchas e seu governo, chegaram a colocar Paulo Roberto Mendes no comando da Brigada Militar, numa clara demonstração da opção pelo confronto.

Depois de alguns meses de intensa repressão, o coronel foi promovido para a Justiça Militar do Rio Grande do Sul, enquanto a mudança formal não mudou a linha política de militarização na solução das questões sociais.

O clima político repressivo no Rio Grande do Sul tem na Farsul, entidade que representa os proprietários e grandes latifundiários gaúchos, base do apoio social ao governo de Yeda Crusius, um dos seus principais representantes.

Ainda em 2003, durante o Governo Germano Rigotto, ao qual também a Farsul deu sustentação política, a marcha do MST em direção a São Gabriel se tornou uma marca dos conflitos agrários recentes na formação social do estado. Os fazendeiros chegaram instrumentalizar seus peões em cavalgadas intiidatórias, fazendo de tudo para que os Sem Terra não chegassem até a Fazenda Southall, desapropriada como improdutiva para fins de reforma agrária.

Nas cidades vizinhas, enquanto as famílias rumavam para aquela cidade da fronteira Oeste, erguiam-se barreiras de camionetas importadas a fim de impedir que se chegasse a São Gabriel. Proprietários rurais e o prefeito da cidade, Rossano Gonçalves,[1] se colocaram ideologicamente contra a desapropriação da Fazenda, após a publicação de decreto do governo federal que a declarou de utilidade pública para fins de reforma agrária, numa área de 13 mil hectares.

O Poder Judiciário estadual chegou a paralisar a marcha, enquanto os reacionários gabrielenses lançaram manifestos apócrifos contra os miseráveis e deserdados da terra. Num deles, chamado ?Exterminar os ratos do MST?, o bisonho texto demonstrava o ódio de classe dos herdeiros atuais dos que justificaram os massacres de Canudos, na Bahia, de Contestado, entre Santa Catarina e Paraná, do Fundão, no Rio Grande do Sul e de Eldorado dos Carajás, no Pará. Vejamos:

?Povo de São Gabriel, não permita que sua cidade, tão bem conservada nesses anos todos, seja agora maculada pelos pés deformados e sujos da escória humana. São Gabriel, que nunca conviveu com a miséria, terá agora que abrigar o que de pior existe no seio da sociedade. Nós não merecemos que essa massa podre, manipulada por meia dúzia de covardes que se escondem atrás de estrelinhas no peito, venham trazer o roubo, a violência, o estupro, a morte. Esses ratos precisam ser exterminados. Vai doer, mas para grandes doenças, fortes são os remédios. É preciso correr sangue para mostrarmos nossa bravura. Se queres a paz, prepara a guerra. Só assim daremos exemplo ao mundo que em São Gabriel não há lugar para desocupados. Aqui é lugar de povo ordeiro, trabalhador e produtivo. Nossa cidade é terra de oportunidades para quem quer produzir e não oportunidades para bêbados, ralé, vagabundos e mendigos de aluguel. Se tu, gabrielense amigo, fores procurado por um faminto rato do MST, dê-lhe um prato de comida, com três colheres cheias de qualquer veneno para rato. Se possui um avião agrícola, pulveriza à noite 100 litros de gasolina em vôo rasante sobre o acampamento de lona dos ratos. Sempre terá uma vela acesa para terminar o serviço e liquidar com todos eles. Se és proprietário de terras ao lado do acampamento, usa qualquer remédio de banhar gado na água que eles utilizam para beber. Rato envenenado bebe mais água ainda. Se possui uma arma de caça calibre 22, atira de dentro do carro contra o acampamento, o mais longe possível. A bala atinge o alvo mesmo há 1200 metros de distância?.[2]

No entanto, as ameaças de repressão e as ações judiciais não foram suficientes para que os Sem Terra desistissem da Fazenda Southall. Em 2008, à Estância do Céu, uma área de 5 mil hectares, parte da área, foi desapropriada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), possibilitando abrigar dezenas de famílias.

Por outro lado, a ameaça do sangue e da guerra, mantida pelos fazendeiros e pela Farsul que, não por coincidência, tem como vice-presidente Tarso Teixeira, presidente do Sindicato Rural de São Gabriel, ganhou orientação política pela Secretaria de Segurança Pública (SSP) do novo governo estadual, a partir de janeiro de 2007.

Também não foi coincidência a audiência pública, em 27 de Janeiro de 2009, que reuniu a SSP, lideranças rurais de cidade, o Ministério Público e segmentos da segurança de municípios região, em evento ocorrido justamente no Sindicato Rural de São Gabriel. Na ocasião, o secretário estadual da Segurança Pública, Edson Goularte,[3] disse que o tema segurança no campo era prioridade do estado, afirmando que a Brigada Militar e a Polícia Civil estavam permanentemente mobilizados e motivados para os enfrentamentos da questão. Goularte, entre outras declarações, disse que o parâmetro de atuação seria ?sempre a lei?, pois a secretaria sabia o que a sociedade queria.

Na ocasião, o secretário enfatizou que ?a reunião de trabalho em São Gabriel representou mais um passo decisivo na construção de ações integradas entre a Pasta, prefeituras e entidades rurais para qualificar os trabalhos já desenvolvidos no combate a violência no campo?. Ressaltou ainda que a Segurança estava ?agregando ao seu planejamento estratégico e operacional? a parceria de outras secretarias ? mais Farsul e a Federação das Associações dos Municípios do Rio Grande do Sul (Famurs), visando partilhar informações que fortalecessem, mobilizassem e dessem continuidade aos ?processos de fiscalização, prevenção e segurança?. Lembrou, ainda, que o tema vinha sendo debatido pela SSP e a Farsul desde agosto de 2008, sendo que o Governo vinha dando ?constantes demonstrações de firmeza em ações de reintegração de posse, amparado pela Justiça na manutenção do respeito para com a lei e a ordem pública?.

No encontro, o proponente da audiência, Tarso Teixeira, disse que o encontro demonstrava que o Executivo estadual não media esforços na busca de ?resoluções para aumentar a segurança no meio rural?. Demonstrou a preocupação com a chegada ao município de 1.544 famílias, ou quase 10 mil pessoas, a ser assentadas em áreas recentemente adquiridas pelo INCRA. Observou que esse panorama poderia ?gerar uma espécie de favelização rural, visto a União não ter se preocupado com as variáveis de segurança, saúde, emprego, educação e impacto ambiental em São Gabriel e região quando da aquisição das terras?. Assim, para enfrentar a ?nova realidade?, o líder ruralista reivindicou o ?fortalecimento da Brigada Militar e Polícia Civil na cidade, com reforço nos efetivos e na infra-estrutura das instituições?, sem deixar de afirmar que a cidade era berço do ?Maio Verde?, uma ?espinha na garganta do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra?. Sua afirmação final foi uma das mais cabais demonstrações de confiança no Governo de Yeda Crusius: ?sabemos que o Governo do Estado e a Secretaria da Segurança estão conosco?.[4]


Edson Goularte (de pé) com Tarso Teixeira (camisa azul)
e lideranças de São Gabriel e região

Foto: Amilton Belmonte/ASCOM SSP

Pois a promessa de combate à violência no campo não tardou para encontrar a sua face em São Gabriel. Na manhã de sexta-feira, 21 de agosto de 2009, após ações violentas que retiraram sem-terras da sede da prefeitura e para cumprir o mandado de reintegração de posse da ocupação da Fazenda Southall, a morte anunciada se confirmou.

O covarde assassinato do trabalhador rural sem terra Elton Brum da Silva,[5] vitimado com um tiro pelas costas de uma espingarda calibre 12, durante a desocupação pela Brigada Militar, mostrou a face do acordo entre os ruralistas de São Gabriel e o governo de Yeda Crusius. São eles os responsáveis por mais este assassinato cometido pelas classes dominantes brasileiras. É a eles que os trabalhadores brasileiros devem imputar a responsabilidade da morte de Elton. Não apenas ao comandante da operação ou ao policial militar que efetivou o disparo,[6] como querem seus superiores e os setores da mídia que tem incitado a condenação da luta pela terra no Rio Grande do Sul.


Foto de Elton, assassinado pela Brigada Militar comandada
por Yeda Crusius, no Rio Grande do Sul [7]

Como já foi dito na nota pública que o MST lançou sobre o assassinato de Elton Brum, ?o uso de armas de fogo no tratamento dos movimentos sociais revela que a violência é parte da política deste Estado. A criminalização não é uma exceção, mas regra e necessidade de um governo, impopular e a serviço de interesses obscuros, para manter-se no poder pela força?.[8]

Para terminar esta crônica, diante da indignação dos lutadores pela terra e por outro Brasil, parafraseando Euclides da Cunha, voltemos a Elton Brum, assassinado no ano do centenário da morte do grande escritor fluminense: ?a repressão legal o atingiu (...) imerso de todo no sonho de onde não mais despertaria?. Depois disso, após o passeio pelo Arraial de Canudos arrasado, Cunha ainda escreveria: ?e o silêncio descia de novo, reinando outra vez o mesmo silêncio formidável: soldados mudos e imóveis, acaroados com a borda da tapada sinistra, espectantes, na tocaia; ou, ao fundo, em roda dos brasidos, reatando as merendas ligeiras, que tinham, às vezes, uns trágicos convivas - os moradores assassinados, estirados pelos recantos...?.[9]

Notas

** ver CUNHA, Euclides da. Os sertões: campanha de Canudos. 39 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves/Publifolha, p. 104 e 132. Coleção Grandes Nomes do Pensamento Brasileiro.

[1] Rossano Gonçalves, ex-deputado estadual pelo PDT, atualmente é prefeito de São Gabriel.

[2] Grifos nossos.

[3] Edson Goularte estava acompanhado do comandante-geral da Brigada Militar, coronel João Carlos Trindade Lopes, do ouvidor da Segurança, Adão Paiani, do delegado regional da Polícia Civil, Sezefredo Lopes, e do diretor do Departamento de Gestão da Estratégia Operacional da SSP, tenente-coronel Marco Antônio Moura dos Santos,

[4] Grifos nossos. As declarações acima se encontram no próprio portal da SSP do Rio Grande do Sul. Disponível em http://www.ssp.rs.gov.br/portal/principal.php?action=imp_noticias&cod_noticia=12554. Acesso em 24 ago. 2009.

[5] Elton Brum, 44 anos, pai de dois filhos, natural de Canguçu,

[6] O comandante da operação foi o coronel Lauro Binsfield, cujo histórico inclui outras ações de violência contra os trabalhadores, como no 8 de março de 2008, quando repetiu os mesmos métodos contra as mulheres da Via Campesina.

[7] Foto no blog RS Urgente, de Marcos Weissheimer. Disponível em http://rsurgente.opsblog.org/2009/08/21/fotos-mostram-que-elton-foi-morto-pelas-costas/. Acesso em 24 out. 2009.

[8] Ver a integra da nota no Portal do MST. Disponível em http://www.mst.org.br/node/7977. Acesso em 24 ago. 2009.

[9] Ver CUNHA, Euclides da, op. cit., p. 139 e 493.

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ARTIGO
Um Tiro, Muitos Gatilhos

por Ayrton Centeno
Levante Popular da Juventude


Outros tiros continuam viajando para encontrar suas presas. E muitos outros irão se juntar a eles. Aquele que se refestelou na carne e no sangue de Élton, 44 anos, dois filhos, deixou de viajar. Nas redações, muitas mãos têm resíduos de pólvora.

O tiro que partiu da boca da espingarda 12 rumo ao corpo do sem terra Élton Brum da Silva foi disparado muito antes da manhã triste de inverno no coração da Campanha gaúcha. A bala começou a voar em tempos pretéritos, antes até do também triste governo de Yeda Crusius ser inaugurado com a governadora desfraldando invertida a bandeira do Rio Grande do Sul na sacada do Palácio Piratini. E o lema estampado no brasão “Liberdade, Igualdade, Humanidade”, que vai beber na fonte da Revolução Francesa e dos direitos fundamentais do homem, ficou de cabeça para baixo. Era um mau presságio.

O tiro com sua bala vem viajando, na verdade, desde décadas mas apressou-se nos últimos anos. Seu apetite tornou-se mais urgente. A nomeação de um militar com o perfil psicológico do coronel Paulo Roberto Mendes para o comando da Brigada Militar garantiu-lhe um impulso extra. Esta figura extemporânea aportou no governo - curiosamente de um partido que se diz social e democrata - um duplo ódio às manifestações da sociedade na democracia. Tudo bem, as palavras são, com freqüência, um biombo atrás do qual se perpetram os crimes mais hediondos contra o seu sentido original e a social-democracia em questão é somente uma alegoria no nosso carnaval político, a comissão de frente da direita no Brasil. Mas, convenhamos, seria uma demonstração de elegância protocolar que, ao menos, as aparências fossem mantidas. Nada disso. Sob a égide do PSDB, a bala passou a voar mais celeremente em busca do seu alimento.


O tiro aligeirou-se mas ainda zanzava a procura de seu alvo. Durante seu reinado, Mendes, o Bravo, destruiu acampamentos e seus soldados não menos bravamente despejaram terra nas panelas de comida que alimentariam homens, mulheres e crianças. Fez sangrar manifestantes, do campo e da cidade, até ser despachado para uma sinecura no Tribunal Militar do Estado, uma instituição fora de tempo e lugar, altamente merecedora do oficial de notável saber jurídico que passou a integrá-la.

O tiro que tanto espaço percorrera para saciar sua fome achou, enfim, seu repasto na dia 21 de agosto, ao se encontrar com Élton. Mendes partira mas outro coronel, Lauro Binsfield, ficou na linha de frente da repressão. Denunciado à Organização dos Estados Americanos (OEA) por violação dos direitos humanos, foi mantido, mesmo assim, à testa das operações de guerra da BM no campo.

O tiro, peculiarmente, não foi deflagrado por apenas uma arma. Ele cumpriu seu fado sinistro porque muitos dedos apertaram muitos gatilhos. É ilusório pensar que o disparo só pertence a quem apontou a espingarda para desferí-lo.

O tiro não surgiu necessariamente como tiro. Nasceu, por exemplo, do entendimento de que a questão social é um caso de polícia e assim tem que ser tratada. Nasceu de uma caneta correndo sua tinta sobre o decreto de uma nomeação.

O tiro também partiu dos microfones, dos teclados, dos teleprompters. Da voz do dono e dos aquários. Brotou de uma ação ou mesmo de uma omissão. Na mídia, são muitos os dedos e os gatilhos que foram apertados. Uma imprensa para a qual a democracia não fosse somente uma palavra-biombo questionaria, por exemplo, a entrega do bastão do aparelho repressor a alguém desprovido das mínimas condições para empunhá-lo. Em vez disso, o que se viu foi um constrangedor capachismo dedicado à criação de mitologias reacionárias para afagar os sentimentos mais mesquinhos da classe média. Mas há torpezas piores. O fuzilamento sumário do MST nas manchetes, matérias, fotos, editoriais, artigos construiu um rancor belicoso no imaginário social contra famílias que reivindicam um pedaço de terra. E ocultou que os países importantes do mundo realizaram sua reforma agrária ainda no século 19 ou nos meados do século passado, medida que as elites brasileiras, até recorrendo ao golpe como aconteceu em 1964, impediram desde sempre.

O tiro viajou como outros viajaram no passado. Um dos filmes mais odiosos jamais feitos, O Eterno Judeu, de Franz Hippler, estreou em 1940, em Berlim, perante uma platéia sofisticada: artistas, cientistas, damas da sociedade e a fina flor do partido nazista. Na montagem alternam-se as cenas dos judeus, mostrados como preguiçosos, sujos e indignos, com moscas numa parede. É preciso convencer as pessoas de que aquilo é uma praga e precisa ser exterminada – mais tarde, um pesticida, o Ziklon B, será empregado na solução final. A arte de Hippler prepara o holocausto. Alguém dirá: mas esta é uma comparação extremada, vivemos em uma democracia! Sim, é verdade, apesar do coronel Binsfield. Mas não se pretende aqui, supor equivalentes a época, as partes, o tamanho da violência. O interesse está no processo. Quando a intenção é destruir o adversário – e isto se faz de diversas formas, como ao superexpor seus erros e/ou sonegar suas virtudes, usando do poder devastador dos conglomerados de mídia — o modus operandi é similar., Se o objetivo final, conscientemente ou não, é negar a humanidade do outro, tudo é possível. Porque o outro, então, está fora da proteção do arcabouço jurídico. Não é gente. E o passo seguinte pode ser sua eliminação, física inclusive.

Outros tiros continuam viajando para encontrar suas presas. E muitos outros irão se juntar a eles. Aquele que se refestelou na carne e no sangue de Élton, 44 anos, dois filhos, deixou de viajar. Nas redações, muitas mãos têm resíduos de pólvora.

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sábado, 18 de julho de 2009

ARTIGO
A Linguagem como Palco da Luta de Classes

por Ivan Rodrigo Trevisan
Estudante de História UFSM


A linguagem, tão antiga quanto a consciência, é, conforme Marx:“ a expressão e o produto da consciência real, prática dos intercâmbios sociais, um fenômeno essencialmente histórico e social” (MARX). Portanto, espaço de disputa entre classes sociais antagônicas, onde a classe dominante, através da língua, tenta impor seus valores culturais e políticos, para melhor continuar explorando as classes inferiores. Muitas vezes considerada como “neutra” ou natural, e até mesmo, supra-histórica, tem se dado pouca atenção a língua, subestimando sua importância, tanto como instrumento de dominação das elites, como também um forte elemento de identidade e resistência cultural de um determinado grupo.

Durante o período colonial, para impor sua hegemonia, econômica e cultural sobre o Brasil, em 1758, os portugueses decretaram uma reforma administrativa, assinada pelo Marques de Pombal, que previa a proibição e conseqüente erradicação das línguas indígenas faladas no Brasil, impondo o português como a língua oficial dos habitantes, sob pena de repressão e punição para os que não se “adequassem” a nova ordem.

Mesmo com a censura lingüística, palavras e dialetos dos subalternos acabaram sendo incorporados á nova versão “culta” do português, obviamente, sem serem reconhecidas pelas elites dominantes. Por isso, hoje, muitas vezes, usamos palavras de origens nativas e africanas, sem termos consciência disso. Em grande parte das vezes, as palavras passavam a ter um sentido pejorativo.

Como por exemplo, a palavra “moleque”, que no dialeto africano, significava menino, hoje, no português, usa-se moleque para identificar um “menino de rua” ou um “menino travesso”. Outro exemplo de origem nativa, é a palavra “china”, que significava mulher, hoje é sinônimo de mulher, mas mulher prostituída.

Essa opção pelo português culto foi um divisor de águas entre a plebe ignara e as elites dominantes. A sacralização do “falar erudito”, e do “português correto”, pressupõe a sua restrição apenas as camadas superiores da sociedade, nunca a sua universalização. Ou seja: esse elitismo lingüístico era, e continua sendo, usado como forma de discriminação social, étnico e cultural. Tornou-se uma espécie de fronteira entre o “falar da casa grande”, e o “falar da senzala”.

“O processo de unificação, ou padronização, retira a língua de sua realidade social, complexa e dinâmica, para transformá-la num objeto externo aos falantes, numa entidade com "vida própria", (supostamente) independente dos seres humanos que a falam, escrevem, lêem e interagem por meio dela” (BAGNO).

Hoje, os responsáveis pela divulgação e sacralização do padrão culto, são os grandes meios transmissores de conhecimento, como a escola e os meios de
Comunicação de massa, quase sempre a serviço da burguesia nacional e internacional, como forma de impedir qualquer tipo de ascensão social das classes populares.

Tratando-se de um fenômeno político-social, percebe-se que a discriminação ou a aceitação de tais fonéticas, ultrapassam as razões lingüísticas, pois certos tipos de pronúncias, como “leitchi”, referindo-se ao falar carioca de “leite”, é bem visto e até considerado elegante, enquanto que “caro”, usado pelos colonos ao invés de “carro”, é descriminado e até mesmo motivo de deboche, pois é sinônimo de trabalhador rural.

Durante o século XX, foi hegemônica a visão dos lingüistas estruturalistas, que, apesar de afirmarem que a linguagem verbal se trata de um fenômeno social, colocavam a formação da linguagem humana, como se tratando de uma espécie de “consentimento coletivo”, deixando a língua essencialmente autônoma á pratica social, como se fosse um “ente neutro”, um espaço sem disputas. Ora, isso é negar especialmente o caráter dialético da linguagem, conseqüentemente, negar o papel da luta de classes no cotidiano da sociedade civil. Conforme o lingüista marxista Bakhtine: “a linguagem única não é dada, mas, posto como princípio e, em todos os momentos de sua vida, ela se opõem ao plurilinguismo”. Isso significa a negação, de forma autoritária, das diversidades culturais, característica elementar de um projeto social excludente, como o projeto de sociedade capitalista desenvolvido no Brasil. Ao estado cabe o papel de submeter os cidadãos “ás regras do jogo”, ditadas pela burguesia, que como classe, detém o monopólio do “falar e do escrever erudito”, estabelecendo formas de poder através da linguagem, quase sempre inacessíveis ao proletariado. Trata-se de entender, como a infra-estrutura determina a língua e, como a língua reflete e retrata a realidade e suas transformações. Prossegue Bakhtine: “As relações de produção e a estrutura sócio-política que delas diretamente deriva, determinam todos os contatos verbais possíveis entre os indivíduos, todas as formas e os meios de comunicação verbal, no trabalho, na vida, na política, na criação ideológica”.

Esse preconceito lingüístico ocorre, de maneira ainda mais forte e evidente, com indivíduos de camadas inferiores da sociedade que, de maneira isolada, ascendem socialmente. Sejam eles, escritores, políticos, jogadores de futebol, que, a partir do momento em que assumem uma posição de destaque social, passam a sofrer o preconceito de maneira “pedagógica”, para que as pessoas que falam e se expressam como ele, vejam e sintam-se envergonhadas de sua cultura e de suas origens. Trata-se de um preconceito nitidamente de classe. Em uma sociedade profundamente hierarquizada, tem como conseqüência uma hierarquização de seus valores culturais, como: “o que é certo e o que é errado”, ou “o que é bom e o que é ruim”. A língua talvez seja um dos elementos mais importantes nesse aspecto, pois trata-se de como os homens se comunicam, como refletem e expressam em palavras as suas relações sociais, marcadas por contradições e conflitos. Por isso a necessi
dade de acabar com a cultura do erro!

Prova concreta de que, a língua é palco privilegiado da luta de classes, é a maneira como os países imperialistas tentam, a todo custo, impor suas línguas aos países dominados, pois, parte do domínio econômico é fruto também da dominação cultural. Basta ver a invasão de palavras estrangeiras, ou melhor, inglesas no Brasil, como conseqüência principalmente devido á globalização de mercado, e a “norte americanização” do mundo, pois praticamente não se vê ninguém falando palavras turcas, árabes ou sul-africanas em território brasileiro.

Diferentemente do que pensavam alguns intelectuais da década de 30’, o pluralismo lingüístico não significa um empecilho á formação de uma unidade nacional. Pelo contrário, é através dessa diversidade cultural e de seu reconhecimento enquanto caráter de classe, que se constituem um dos principais elementos de transformação social. Conforme Maestri: “O reconhecimento do caráter de classe das línguas nacionais é imprescindível á proposta e a construção de práticas, políticas e legislação lingüísticas que expressem, nesse domínio, a luta dos trabalhadores pela hegemonia nacional, na perspectiva de superação das próprias fronteiras nacionais, imprescindível a emancipação dos trabalhadores, na atual etapa da história da humanidade”.

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segunda-feira, 4 de maio de 2009

ARTIGO
Primeiro de Maio: Dia do Trabalho ou do Trabalhador?

por Henrique Cignachi
Estudante de História UFSM


Para alguns, apenas mais um feriado no ano, algo a atrapalhar os “negócios”. Para outros, um dia de caráter festivo, inclusive com direito a sorteios. Mas para outros, é um dia a ser lembrado de forma crítica, para a reivindicação-manutenção de direitos e para a luta por uma sociedade em que o trabalho seja dos próprios trabalhadores e trabalhadoras.

A fim de melhor entendermos a data, é necessário buscar sua historicidade. O 1º de maio deve ser entendido como resultado de um processo histórico de luta de classes iniciado a mais de dois séculos e de onde, desde então, é difícil esboçar uma “harmonização” ou negação desta sem que antes seja abolida a exploração do homem sobre o homem.


Na Europa, o progresso da Revolução Industrial criou também uma gigantesca massa de trabalhadores, os chamados “proletários” (que não possuem propriedade, apenas os filhos e a força de trabalho), derivados do êxodo rural forçado através das pressões econômicas e coerção direta dos Estados (o que não deixa de ser um fenômeno atual). Em todo o mundo, essa massa de trabalhadores começava a se tornar uma grande força que questionava a ordem social e econômica, ao qual estavam e continuam sendo subjugados através da expropriação de seu trabalho pelos proprietários da terra, da indústria e do comércio. Reunidos sob o lema “operários de todo o mundo, uni-vos!” e sob o corolário das idéias comunistas/socialistas/anarquistas, contrapunham-se à ordem instaurada pelo capitalismo. Esta peleja também foi uma constante no Brasil, principalmente na luta dos escravos contra senhores, na criação de sociedades autônomas – os quilombos - e na luta dos t rabalhadores assalariados a partir do início do século XX, através de greves e pela participação política na democracia representativa.

O primeiro de maio, enquanto data rememorativa tem origem em manifestações ocorridas nos Estados Unidos no final do século XIX. Em Chicago, no dia 1º de maio de 1886, os operários norte-americanos entraram em greve geral: “A partir de hoje nenhum operário deve trabalhar mais de oito horas diárias. Oito horas de trabalho! Oito horas de repouso! Oito horas de educação!” Vários operários são mortos na repressão policial que se seguiu (as greves eram consideradas ilegais) e cinco líderes condenados à morte por enforcamento. Nos anos seguintes, a classe se organiza anualmente para relembrar os mortos e prosseguir com a luta. A proposta é aprovada em Paris, no encontro da Associação Internacional dos Trabalhadores em 1889 e, pelo seu êxito em congregar lutas, é aprovada a manutenção anual da data para a manifestação da classe trabalhadora internacionalmente.

No Brasil, a apropriação da data não deixou de ser diferente, mas logo foi subvertida em seu sentido original. No pós-1930, Vargas dá caráter oficial e recreativo a data, sempre decretando direitos trabalhistas e aumentos no dia, mas com o intento de agregar os trabalhadores de forma moderada ao nacionalismo e a fim de reprimir o movimento operário comunista/anarquista. Assim o 1º de maio passou a ser considerado “dia do trabalho”, e não do trabalhador que é quem realiza o trabalho e é quem mais sofre as conseqüências da não distribuição democrática e igualitária deste.

Cabe então realizarmos, principalmente os trabalhadores do campo e da cidade, a reflexão critica deste processo. Mesmo hoje com um ex-operário na presidência, as políticas públicas em relação aos trabalhadores continuam sendo ameaçadas, como nesta crise em que não há atitudes concretas para salvar os empregos, mas tão somente os lucros dos empresários, multinacionais e grandes financistas-banqueiros. Apenas a nossa luta e conscientização cotidiana, organizada em partidos e associações de classe contendo propostas revolucionárias, poderão nos levar a criar uma sociedade em que possamos estabelecer a regra máxima do “cada um segundo suas capacidades, cada um segundo suas necessidades”.

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sábado, 25 de abril de 2009

REPORTAGEM
Nos rincões dos Mendes

Em sua terra natal, o presidente do STF e a família agem como coronéis

por Leandro Fortes
(Carta Capital 20/11/2008)


Existe um lugar, nas entranhas do Centro-Oeste, onde a vetusta imagem do ministro Gilmar Mendes, presidente do Supremo Tribunal Federal, nada tem a ver com aquela que lhe é tão cara, de paladino dos valores republicanos, guardião do Estado de Direito, diligente defensor da democracia contra a permanente ameaça de um suposto – e providencial – “Estado policial”.

Em Diamantino, a 208 quilômetros de Cuiabá, em Mato Grosso, o ministro é a parte mais visível de uma oligarquia nascida à sombra da ditadura militar (1964-1985), mas derrotada, nas eleições passadas, depois de mais de duas décadas de dominação política.

O atual prefeito de Diamantino, o veterinário Francisco Ferreira Mendes Júnior, de 50 anos, é o irmão caçula de Gilmar Mendes. Por oito anos, ao longo de dois mandatos, Chico Mendes, como é conhecido desde menino, conseguiu manter-se na prefeitura, graças à influência política do irmão famoso. Nas campanhas de 2000 e 2004, Gilmar Mendes, primeiro como advogado-geral da União do governo Fernando Henrique Cardoso e, depois, como ministro do STF, atuou ostensivamente para eleger o irmão. Para tal, levou a Diamantino ministros para inaugurar obras e lançar programas, além de circular pelos bairros da cidade, cercado de seguranças, a pedir votos para o irmão-candidato e, eventualmente, bater boca com a oposição.

Em setembro do ano passado, o ministro Mendes foi novamente escalado pelo irmão Chico Mendes para garantir a continuidade da família na prefeitura de Diamantino. Depois de se ancorar no grupo político do governador Blairo Maggi, os Mendes também migraram do PPS para o PR, partido do vice-presidente José Alencar, e ingressaram na base de apoio do presidente Luiz Inácio Lula da Silva – a quem, como se sabe, Mendes costuma, inclusive, chamar às falas, quando necessário. Maggi e os Mendes, então, fizeram um pacto político regional, cujo movimento mais ousado foi a assinatura, em 10 de setembro de 2007, do protocolo de intenções para a instalação do Grupo Bertin em Diamantino, às vésperas do ano eleitoral de 2008.



Considerado um dos gigantes das áreas agroindustrial, de infra-estrutura e de energia, o Bertin acabou levado para Diamantino depois de instalado um poderoso lobby político capitaneado por Mendes, então vice-presidente do STF, com o apoio do governador Blairo Maggi, a quem coube a palavra final sobre a escolha do local para a construção do complexo formado por um abatedouro, uma usina de biodiesel e um curtume. O investimento previsto é de 230 milhões de reais e a perspectiva de criação de empregos chega a 3,6 mil vagas. Um golpe de mestre, calcularam os Mendes, para ajudar a eleger o vereador Juviano Lincoln, do PPS, candidato apoiado por Chico Mendes à sucessão municipal.

No evento de assinatura do protocolo de intenções, Gilmar Mendes era só sorrisos ao lado do ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes, a quem levou a Diamantino para prestigiar a gestão de Chico Mendes, uma demonstração de poder recorrente desde a primeira campanha do irmão, em 2000. Durante a cerimônia, empolgado com a presença do ministro e de dois diretores do Bertin, Blairo Maggi conseguiu, em uma só declaração, carimbar o ministro Mendes como lobista e desrespeitar toda a classe política mato-grossense. Assim falou Maggi: “Gilmar Mendes vale por todos os deputados e senadores de Mato Grosso”. Presente no evento estava o prefeito eleito de Diamantino, Erival Capistrano (PDT), então deputado estadual. “O constrangimento foi geral”, lembra Capistrano.

Ainda na festa, animado com a atitude de Maggi, o deputado Wellington Fagundes (PR-MT) aproveitou para sacramentar a ação do presidente do STF. “O ministro Gilmar Mendes tem usado o seu prestígio para beneficiar Mato Grosso, apesar de não ser nem do Executivo nem do Legislativo”, esclareceu, definitivo. Ninguém, no entanto, explicou ao público e aos eleitores as circunstâncias da empresa que tão alegremente os Mendes haviam conseguido levar a Diamantino.

O Grupo Bertin, merecedor de tanta dedicação do presidente do STF, foi condenado pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), em novembro de 2007, logo, dois meses depois da assinatura do protocolo, por formação de cartel com outros quatro frigoríficos. Em 2005, as empresas Bertin, Mataboi, Franco Fabril e Minerva foram acusadas pela Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça de combinar os preços da comercialização de gado bovino no País. Foi obrigado a pagar uma multa equivalente a 5% do faturamento bruto, algo em torno de 10 milhões de reais. No momento em que Gilmar Mendes e Blairo Maggi decidiram turbinar a campanha eleitoral de Diamantino com o anúncio da construção do complexo agroindustrial, o processo do Bertin estava na fase final.

Ainda assim, quando a campanha eleitoral de Diamantino começou, em agosto passado, o empenho do ministro Mendes para levar o Bertin passou a figurar como ladainha na campanha do candidato da família, Juviano Lincoln. Em uma das peças de rádio, o empresário Eraí Maggi, primo do governador, ao compartilhar com Chico Mendes a satisfação pela vinda do abatedouro, manda ver: “Tenho falado pro Gilmar, seu irmão, sobre isso”. Em uma das fazendas de soja de Eraí Maggi, o Ministério do Trabalho libertou, neste ano, 41 pessoas mantidas em regime de escravidão.

Tanto esforço mostrou-se em vão eleitoralmente. Em outubro passado, fustigado por denúncias de corrupção e desvio de dinheiro, o prefeito Chico Mendes foi derrotado pelo notário Erival Capistrano, cuja única experiência política, até hoje, foi a de deputado estadual pelo PDT, por 120 dias, quando assumiu o cargo após ter sido eleito como suplente. “Foi a vitória do tostão contra o milhão”, repete, como um mantra, Capistrano, a fim de ilustrar a maneira heróica como derrotou, por escassos 418 votos de diferença, o poder dos Mendes em Diamantino. De fato, não foi pouca coisa.

Em Diamantino, a família Mendes se estabeleceu como dinastia política a partir do golpe de 1964, sobretudo nos anos 1970, época em que os militares definiram a região, estrategicamente, como porta de entrada para a Amazônia. O patriarca, Francisco Ferreira Mendes, passou a alternar mandatos na prefeitura com João Batista Almeida, sempre pela Arena, partido de sustentação da ditadura. Esse ciclo foi interrompido apenas em 1982, quando o advogado Darcy Capistrano, irmão de Erival, foi eleito, aos 24 anos, e manteve-se no cargo por dois mandatos, até 1988. A dobradinha Mendes-Batista Almeida só voltaria a funcionar em 1995, bem ao estilo dinástico da elite rural nacional, com a eleição, primeiro, de João Batista Almeida Filho. Depois, em 2000, de Francisco Ferreira Mendes Júnior, o Chico Mendes.

Gilmar nasceu em Diamantino em 30 de dezembro de 1955. O lugar já vivia tempos de franca decadência. Outrora favorecida pelo comércio de diamantes, ouro e borracha por mais de dois séculos, a cidade natal do atual presidente do STF se transformou, a partir de meados do século XX, num município de economia errática, pobre e sem atrativos turísticos, dependente de favores dos governos federal e estadual. Esse ambiente de desolação social, cultural e, sobretudo, política favoreceu o crescimento de uma casta coronelista menor, se comparada aos grandes chefes políticos do Nordeste ou à aristocracia paulista do café, mas ciosa dos mesmos métodos de dominação.

Antes do presidente do STF, a figura pública mais famosa do lugar, com direito a busto de bronze na praça central da cidade, para onde os diamantinenses costumam ir para fugir do calor sufocante do lugar, era o almirante João Batista das Neves. Ele foi assassinado durante a Revolta da Chibata, em 1910, por marinheiros revoltosos, motivados pelos maus-tratos que recebiam de oficiais da elite branca da Marinha, entre eles, o memorável cidadão diamantinense.

Na primeira campanha eleitoral de Chico Mendes, em 2000, o então advogado-geral da União, Gilmar Mendes, conseguiu levar ministros do governo Fernando Henrique Cardoso para Diamantino, a fim de dar fôlego à campanha do irmão. Um deles, Eliseu Padilha, ministro dos Transportes, voltou à cidade, em agosto de 2001, ao lado de Mendes, para iniciar as obras de um trecho da BR-364. Presente ao ato, prestigiado como sempre, estava o irmão Chico Mendes. No mesmo mês, um dos principais assessores de Padilha, Marco Antônio Tozzati, acusado de fazer parte de uma quadrilha de fraudadores que atuava dentro do Ministério dos Transportes, juntou-se a Gilmar Mendes para fundar a Faculdade de Ciências Sociais e Aplicadas de Diamantino, a Uned.

O ministro Mendes, revelou CartaCapital na edição 516 (leia o post Gilmar: às favas a ética), é acionista de outra escola, o Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), que obteve contratos sem licitação com órgãos públicos e empréstimos camaradas de agências de fomento. Não é de hoje, portanto, que o ensino, os negócios e a influência política misturam-se oportunamente na vida do presidente do Supremo.

No caso da Uned, o irmão-prefeito bem que deu uma mãozinha ao negócio do irmão. Em 1º de abril de 2002, Chico Mendes sancionou uma lei que autorizava a prefeitura de Diamantino a reverter o dinheiro recolhido pela Uned em diversos tributos, entre os quais o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), Imposto Sobre Serviços (ISS) e sobre alvarás, em descontos nas mensalidades de funcionários e “estudantes carentes”. Dessa forma, o prefeito, responsável constitucionalmente por incrementar o ensino infantil e fundamental, mostrou-se estranhamente interessado em colocar gente no ensino superior da faculdade do irmão-ministro do STF.

Em novembro de 2003, o jornalista Márcio Mendes, do jornal O Divisor, de Diamantino, entrou com uma representação no Ministério Público Estadual de Mato Grosso, para obrigar o prefeito a demonstrar, publicamente, que funcionários e “estudantes carentes” foram beneficiados com a bolsa de estudos da Uned, baseada na renúncia fiscal – aliás, proibida pela Lei de Responsabilidade Fiscal – autorizada pela Câmara de Vereadores. Jamais obteve resposta. O processo nunca foi adiante, como, de praxe, a maioria das ações contra Chico Mendes. Atualmente, Gilmar Mendes está afastado da direção da Uned. É representado pela irmã, Maria Conceição Mendes França, integrante do conselho diretor e diretora-administrativa e financeira da instituição.

O futuro prefeito, Erival Capistrano, estranha que nenhum processo contra Chico Mendes tenha saído da estaca zero e atribui o fato à influência do presidente do STF. Segundo Capistrano, foram impetradas ao menos 30 ações contra o irmão do ministro, mas quase nada consegue chegar às instâncias iniciais sem ser, irremediavelmente, arquivado. Em 2002, a Procuradoria do TCE mato-grossense detectou 38 irregularidades nas contas da prefeitura de Diamantino, entre elas a criação de 613 cargos de confiança. A cidade tem 19 mil habitantes. O Ministério Público descobriu, ainda, que Chico Mendes havia contratado quatro parentes, inclusive a mulher, Jaqueline Aparecida, para o cargo de secretária de Promoção Social, Esporte e Lazer.

No mesmo ano de 2002, o vereador Juviano Lincoln (ele mesmo, o candidato da família) fez aprovar uma lei municipal, sancionada por Chico Mendes, para dar o nome de “Ministro Gilmar Ferreira Mendes” à avenida do aeródromo de Diamantino. Dois cidadãos diamantinenses, o advogado Lauro Pinto de Sá Barreto e o jornalista Lúcio Barboza dos Santos, levaram o caso ao Senado Federal. À época, o presidente da Casa, Renan Calheiros (PMDB-AL), não aceitou a denúncia. No Tribunal de Justiça de Mato Grosso, a acusação contra a avenida Ministro Gilmar Mendes também não deu resultados e foi arquivada, no ano passado.

A lentidão da polícia e da Justiça na região, inclusive em casos criminais, acaba tendo o efeito de abrir caminho a várias suspeitas e deixar qualquer um na posição de ser acusado – ou de ver o assunto explorado politicamente.

Em 14 de setembro de 2000, na reta final da campanha eleitoral, a estudante Andréa Paula Pedroso Wonsoski foi à delegacia da cidade para fazer um boletim de ocorrência. Ao delegado Aldo Silva da Costa, Andréa contou, assustada, ter sido repreendida pelo então candidato do PPS, Chico Mendes, sob a acusação de tê-lo traído ao supostamente denunciar uma troca de cestas básicas por votos, ao vivo, em uma emissora de rádio da cidade. A jovem, de apenas 19 anos, trabalhava como cabo eleitoral do candidato, ao lado de uma irmã, Ana Paula Wonsoski, de 24 – esta, sim, responsável pela denúncia.

Ao tentar explicar o mal-entendido a Chico Mendes, em um comício realizado um dia antes, 13 de setembro, conforme o registro policial, alegou ter sido abordada por gente do grupo do candidato e avisada: “Tome cuidado”. Em 17 de outubro do mesmo ano, 32 dias depois de ter feito o BO, Andréa Wonsoski resolveu participar de um protesto político.

Ela e mais um grupo de estudantes foram para a frente do Fórum de Diamantino manifestar contra o abuso de poder econômico nas eleições municipais. A passeata prevista acabou por não ocorrer e Andréa, então, avisou a uma amiga, Silvana de Pino, de 23 anos, que iria tentar pegar uma carona para voltar para casa, por volta das 19 horas. Naquela noite, a estudante desapareceu e nunca mais foi vista. Três anos depois, em outubro de 2003, uma ossada foi encontrada por três trabalhadores rurais, enterrada às margens de uma avenida, a 5 quilômetros do centro da cidade. Era Andréa Wonsoski.

A polícia mato-grossense jamais solucionou o caso, ainda arquivado na Vara Especial Criminal de Diamantino. Mesmo a análise de DNA da ossada, requerida diversas vezes pela mãe de Andréa, Nilza Wonsoski, demorou outros dois anos para ficar pronta, em 1º de agosto de 2005. De acordo com os três peritos que assinam o laudo, a estudante foi executada com um tiro na nuca. Na hora em que foi morta, estava nua (as roupas foram encontradas queimadas, separadas da ossada), provavelmente por ter sido estuprada antes.

Chamado a depor pelo delegado Aldo da Costa, o prefeito Chico Mendes declarou ter sido puxado pelo braço “por uma moça desconhecida”. Segundo ele, ela queria, de fato, se explicar sobre as acusações feitas no rádio, durante o horário eleitoral de outro candidato. Mendes alegou não ter levado o assunto a sério e ter dito a Andréa Wonsoski que deixaria o caso por conta da assessoria jurídica da campanha.

CartaCapital tentou entrar em contato com o ministro Gilmar Mendes, mas o assessor de imprensa, Renato Parente, informou que o presidente do STF estava em viagem oficial à Alemanha. Segundo Parente, apesar de todas as evidências, inclusive fotográficas, a participação de Mendes no processo de implantação do Bertin em Diamantino foi “zero”. Parente informou, ainda, que a participação do ministro nas campanhas do irmão, quando titular da AGU, foram absolutamente legais, haja vista ser Mendes, na ocasião, um “ministro político” do governo FHC. O assessor não comentou sobre os benefícios fiscais concedidos pelo irmão à universidade do ministro.

A reportagem da Carta também procurou o prefeito Chico Mendes. O chefe de gabinete, Nélson Barros, prometeu contatar o prefeito e, em seguida, viabilizar uma entrevista, o que não aconteceu.

MULTIMÍDIA:

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ARTIGO
Um Olhar sobre a Exclusão
por Rafael Wilhelm
Estudante de História UFSM


Durante a semana do último dia 20 de novembro assisti a alguns programas na TV sobre a comemoração do Dia Nacional da Consciência Negra, e o que me chamou a atenção nesses programas foi o modo como as diferentes emissoras simbolizaram aquela data. Houve uma diferença muito pequena entre as abordagens feitas por cada um dos programas.

Até aí tudo bem, não é mesmo? Todos têm o direito de pensar semelhante e dessa forma expressar coisas quase idênticas. O que me chamou a atenção, contudo, não foi o fato dessas emissoras abordarem o assunto sob perspectivas semelhantes, mas o conteúdo dessa semelhança.

Dias antes, motivado pelas discussões que tivemos em aula, perguntei a um dos meus colegas de apartamento se ele achava que os negros estariam reconquistando seu espaço na sociedade brasileira, o mesmo espaço que teria sido roubado de seus antepassados no momento em que foram introduzidos no Brasil sob condições desiguais. Ele me respondeu que sim, “os negros estão retomando seu espaço na sociedade brasileira”. Afirmou isso utilizando o argumento de que cada vez mais negros desempenham papéis importantes na tv, mais cantores negros estariam fazendo sucesso, vários dançarinos negros estariam se destacando, e tantos outros negros, adquirindo fama através do esporte. Ainda de acordo com esse meu amigo, a “mídia”, por mostrar freqüentemente essas “conquistas”, estaria fortalecendo ainda mais tal inclusão.

Vocês querem saber o que eu vi naqueles programas da semana do dia 20 de novembro? Basicamente aquilo que meu colega relatou: artistas, cantores, esportistas e dançarinos negros sendo destacados, por meio de eventos oficiais ou não, como símbolos da importância e da inserção do negro na sociedade brasileira.

Depois de assistir àquelas reportagens, me fiz a seguinte pergunta: A partir do quê tenho eu considerado ou afirmado a inserção da raça negra na sociedade brasileira? Pasmem: semelhante a do meu colega, também a minha resposta ficou pairando sobre o quê a tevê principalmente havia me apresenteado como símbolo dessa suposta reintegração negra, não apenas através daquelas reportagens sobre o Dia Nacional da Consciência Negra, mas por tantas outras, anteriores aquelas, que foram absorvidas por mim também sem a devida análise crítica.

É inevitável não atribuirmos à raça negra em geral, potencialidades inatas. Temos realmente uma infinidade de ótimos artistas negros, vários atletas negros com desempenho maravilhoso, cantores, dançarinos... mas até que ponto essas capacidades, e apenas elas, precisam ser reproduzidas como elementos principais de valorização e reintegração dos negros à sociedade brasileira?

A cultura, o esporte, a arte sem dúvida alguma são caminhos legítimos de integração, mas e quanto aos cidadãos negros desamparados ou despossuídos dessas atividades e/ou qualidades? O que será que o seu José, operário negro que não sabe cantar acha disso? Ou a dona Maria, doméstica negra que não sabe dançar pensa sobre isso? E o Joãozinho, menino negro que não tem habilidade com a bola de futebol?

Eu adoro fotografia, e é costume meu sempre analisar uma foto a partir daquilo que foi deixado de fora dela. E creio que, nestes casos, o que tem sido deixado de lado tem um peso muito grande, pois se refere ao cotidiano da maior parte dos cidadãos negros, daqueles que por vários motivos não aparecem nos noticiários semanais nem em matérias especiais, mas que sofrem dia-a-dia com os mais diversos e pesados tipos de discriminação.

Nesse processo de inclusão social dos grupos historicamente marginalizados praticado por uma parcela da mídia e reproduzido por nós, ainda persiste o medo de reconhecer e lidar com os silêncios que sustentam verdadeiramente essa condição: a discriminação racial pura, do olhar dissimulado, do não olhar, do riso, do escárnio, do deboche, do nojo... e suas variáveis: o desemprego, os baixos salários, o subemprego, a exclusão. Um medo que talvez reflita a nossa própria culpa, e a nossa omissão diante da possibilidade de punir aqueles que desrespeitam e maltratam o próximo marginalizando-o sob o olhar conivente de outros tantos, não menos culpados que aqueles.

Na tv, no rádio, no jornal e no dia-a-dia, somos ainda obrigados a conviver com o propagandeamento de uma inclusão racial negra travestida de promoção apenas cultural, e muitas vezes restrita ao exótico. Talvez um sinal de que ainda não nos acostumamos a perceber os negros como iguais, em todos os campos e profissões, apenas por sua condição de seres humanos.

Nos falta garantir efetivamente o que continua sendo direito básico e universal de todo indivíduo, seja ele branco, pardo, negro, pobre: a dignidade e a cidadania.

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